Em 1944, Karl Polanyi (1886-1964) publicou sua obra clássica sobre as mudanças econômicas, políticas e institucionais que permitiram, no século 19, o pleno desenvolvimento da economia de mercado e da época de ouro da "civilização liberal".
"A Grande Transformação" foi escrito durante a crise que preparou o nascimento, depois da Segunda Guerra, do Welfare State e dos "Estados desenvolvimentistas", segundo Polanyi, uma reação de autoproteção da sociedade, contra os efeitos entrópicos dos mercados auto-regulados. Hoje, não é difícil perceber que está em curso uma nova "grande transformação" da sociedade e da economia capitalista, cujo resultado mais visível tem sido um retorno às crenças e políticas daquela primeira "época de ouro" do liberalismo econômico.
Ao analisar as mudanças do século 19, Polanyi foi um dos primeiros a associá-las à vitória econômica e política da Inglaterra sobre a França e ao nascimento de uma nova ordem mundial, baseada no controle inglês dos mares, dos portos e da moeda de referência internacional, os pilares em que se sustentou o domínio das "altas finanças" e o poder imperial que a Inglaterra exerceu sobre o mundo, de forma exclusiva, até 1880, e, de forma mais atenuada, até o final da Primeira Guerra.
Agora, de novo, depois do fim do "mundo socialista" e da Guerra Fria, a vitória americana vem criando uma nova ordem mundial articulada a partir do poder global, econômico e militar dos Estados Unidos. Pouco a pouco, os analistas foram percebendo que as mudanças militares, financeiras e tecnológicas do último quarto de século lhes haviam transferido uma enorme capacidade de comando e de penalização sobre o resto do mundo.
Por isso, o que a princípio parecia uma "visão conspiratória", agora já parece um fato normal e consolidado: ganhou força, no fim do século 20, um novo projeto de organização imperial do poder mundial. O que se discute já não é mais a sua existência, é a natureza e a originalidade deste novo império, em particular a sua abrangência e incontestabilidade; a sua forma peculiar de controle não colonial dos territórios e suas relações com a expansão financeira e com os interesses e objetivos estratégicos norte-americanos.
Como disse Samuel Berger, assessor de Segurança Nacional da Presidência dos Estados Unidos, durante a administração Clinton, "a América controla, hoje, o acesso às redes de informação, comércio e segurança e, com isto, tem influência sobre as escolhas das nações. Muitos acontecimentos mundiais recentes ocorreram por causa do uso deste poder pelos Estados Unidos, e não por causa de alguma necessidade preestabelecida e imposta pela globalização".
Muitos analistas internacionais localizam a origem do projeto imperial americano na Guerra Hispano-Americana de 1898 e na Presidência de Theodore Roosevelt (1901-1908), momento em que os EUA já eram -no início do século 20- a maior potência industrial do planeta.
Mas, quando entraram na Primeira Guerra, os EUA só conseguiram enviar 15 mil soldados para a Europa, muitos deles voluntários. Só depois de Hiroshima e Nagasaki e do fim da Segunda Guerra é que os EUA se viram na condição de poder incontrastável no campo militar, financeiro, produtivo e do conhecimento. Superioridade que lhes permitiu construir uma rede de bases militares através de todo o mundo (não-socialista), com uma forte presença no território dos seus antigos adversários.
Foi neste mesmo período que suas grandes corporações lideraram o processo de internacionalização das estruturas produtivas capitalistas, apoiadas num sistema monetário internacional baseado na moeda americana. Esta situação se altera com a crise dos anos 70, mas há muitos analistas que consideram que as decisões e mudanças implementadas pela administração Nixon já apontavam para o objetivo imperial.
Qual é então a grande novidade do final de século 20? O fim da bipolaridade com a URSS, sem dúvida. Mas a grande mudança ocorreu antes, influenciando a própria maneira em que se deu a rendição soviética. Uma transformação radical, nos dois pilares em que todos os impérios sempre se sustentaram: o poder das armas e do dinheiro. A forma de funcionamento do novo sistema monetário mundial, e da "nova maneira americana" de fazer a guerra.
De maneira simplificada, pode-se dizer que tudo começou com a derrota americana no Vietnã, seguida pelos sucessivos reveses da política externa dos EUA durante a década de 1970: a vitória da Revolução Islâmica no Irã; a vitória sandinista na Nicarágua; a crescente presença soviética na África e no Oriente Médio; e, finalmente, a invasão russa do Afeganistão. Um conjunto de humilhações que ajudou a eleger o conservador Ronald Reagan e legitimar seu projeto de retomada da Guerra Fria no início dos anos 1980 -seguido da expansão dos gastos militares do governo norte-americano.
Foi nesse momento que começou, com o nome popular de Guerra nas Estrelas, a "revolução militar" que mudou completamente a concepção política e a base estratégica e logística do poder bélico dos EUA.
Durante esse período se desenvolveram os novos sistemas de informação que permitiram o melhoramento das condições de controle e comando dos campos de batalha; o desenvolvimento de vetores e bombas teledirigidas de alta precisão e sistemas sofisticados de ataque furtivo, além de novos equipamentos sob comando remoto, que permitiram, em conjunto, reduzir ao mínimo o risco de perda de soldados americanos. Uma mudança radical no campo da tecnologia militar, cujos efeitos, no campo de batalha e na política internacional só se manifestaram na década de 1990.
Foi na Guerra do Golfo, em 1991, que ocorreu a primeira demonstração da nova maneira americana de fazer guerra. Quarenta e dois dias de ataques aéreos permitiram uma vitória terrestre em menos de cem horas, com menos de 150 mortes entre as "forças aliadas" que bombardearam o Iraque e mais de 150 mil mortos iraquianos.
Na guerra não declarada de Kosovo, em 1999, foi possível testar e comprovar, pela segunda vez, este poder. Depois de assistir aos 80 dias de bombardeio aéreo ininterrupto do território de Kosovo e da Iugoslávia, sem nenhuma perda humana entre os "aliados" e com a quase total destruição da economia adversária, os governantes e os generais de todo mundo tiveram certeza de que havia nascido, na década de 1990, uma "nova guerra", uma espécie de "guerra tecnocrática", que dispensa a necessidade de soldados cidadãos ou patrióticos.
De forma quase simultânea se desenvolveu, a partir de 1973, uma outra revolução, de natureza financeira, que teve efeitos tão ou mais radicais para o exercício imperial do que os que foram produzidos pela "revolução militar".
Mas foi só na década de 1990 que se pôde apreciar com maior nitidez o funcionamento do novo sistema monetário-financeiro mundial, criado pelas políticas e reformas liberalizantes que levaram à desregulação e integração dos mercados e à livre circulação internacional dos capitais. Uma mudança que alterou a balança de poder, entre as autoridades públicas e os agentes e mercados financeiros privados, e entre as moedas dos diversos países.
Na prática, essa "revolução financeira" deu origem a um novo sistema monetário internacional, uma espécie de "sistema dólar-flexível". Nesse novo padrão, o dólar continua sendo a moeda internacional, mas a ausência da conversibilidade em ouro dá aos EUA -e ao dólar- a liberdade de variar sua paridade em relação às demais moedas conforme sua conveniência, através da simples movimentação das suas taxas de juros. Um poder ainda maior, no caso da relação entre o dólar e as moedas fracas das economias periféricas que também desregularam seus mercados.
Além do que, nesse novo sistema, nascido da "revolução financeira", dos anos 1980, os EUA podem determinar não apenas a variação do valor das demais moedas, mas também a dinâmica de curto prazo da economia mundial. E, o que é essencial, dentro das novas regras, o dólar deixou de ter qualquer padrão de referência que não seja o próprio poder norte-americano.
A possibilidade de fazer guerras, à distância e sem perdas humanas, e o controle de uma moeda internacional sem padrão de referência que não seja o próprio poder do emissor mudaram radicalmente a forma de exercício do poder americano sobre o mundo.
Com a eliminação do poder de contestação soviético e com a ampliação do espaço desregulado da economia mundial de mercado, criou-se um novo tipo de território, submetido à senhoriagem do dólar e à velocidade de intervenção das suas forças militares.
Logo depois da Segunda Guerra, a Pax Americana tinha um parentesco com os velhos impérios marítimos europeus na África e na Ásia, cuja estrutura de poder articulava-se por redes militares, mercantis e financeiras apoiadas por "fortalezas" e "feitorias".
Mas, agora, o novo poder monetário e balístico dos EUA lhes permitiu um maior distanciamento e o estabelecimento de uma forma de dominação que ainda mantém, em alguns casos, suas fortalezas, mas se desfaz, cada vez mais, das feitorias, substituídas pelo controle à distância dos bancos centrais das "províncias" incluídas dentro do seu território imperial. Um território que dispensa fronteiras físicas, porque está recortado por fronteiras monetário-financeiras e estratégicas, facilitando a liderança do capital financeiro norte-americano, nos processos de fusões que promoveram uma gigantesca centralização de capital, durante os anos 1980/1990.
O espaço desse novo tipo de império americano não é contínuo nem homogêneo. Seu poder se apóia no controle de estruturas transnacionais, militares, financeiras, produtivas e ideológicas de alcance global, mas não suprime os Estados nacionais, nem a hierarquia do sistema interestatal.
Reconhece a existência de Estados, que são seus adversários estratégicos, e exerce seu poder de maneira diferenciada: vassalagem, no caso de alguns países do leste asiático e do Oriente Médio; hegemonia, no caso dos aliados europeus.
Só na América Latina, o poder imperial americano é exercido sobre um território contínuo, incluindo todos os seus Estados, com exceção de Cuba. A doutrina Monroe foi enunciada em 1823, mas foi só depois da Guerra Hispano-Americana de 1898, e da crise da hegemonia mundial inglesa, que os EUA passaram a exercer um poder ou soberania incontrastável, com relação aos Estados latino-americanos.
Essa aparente aterritorialidade e a inexistência de contestação são o que leva muitos analistas a pensar que se trata de um império em redes que chegou para ficar. Mas essa forma de organização econômica e política envolve contradições e limites que poderão erodir o poder desse império. É possível identificar, pelo menos, alguns "limites à expansão" desse império.
O primeiro tem a ver com a capacidade de sobrevivência do capitalismo, caso desaparecesse a competição entre os Estados ou poderes político-territoriais.
O segundo tem a ver com o fato que uma autoridade imperial, para que seja aceitável, eficaz e respeitada, requer a existência de alguma combinação de forças que reduza o grau de arbítrio e egoísmo do poder imperial.
E o terceiro e último tem a ver com o fato de que, para que um "poder global" se sustente a longo prazo, é indispensável que permita aos demais Estados ou "províncias independentes" que seus governantes mantenham a sua legitimidade perante os seus governados, evitando, sobretudo, a tendência natural do sistema à "pauperização relativa" de suas populações.
Nome: Charleston Betim
Nenhum comentário:
Postar um comentário